Wait – da curadoria como criação artística

Miriam Tavares, fevereiro 2019

 O artista Orlando Franco criou uma obra, em forma de exposição, à volta de um conceito muito caro à arte europeia pós-II Guerra Mundial: o conceito de espera. Wait, nome que deu à sua exposição, que como disse é um trabalho de curadoria, é, também, uma obra concebida num espaço – o Museu da Coleção Berardo, e que conjuga e confronta uma série de artistas, tendo como eixo central uma peça do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. O dramaturgo que experimentou, na linguagem, novas formas de dizer outras coisas usando, no entanto, as mesmas e gastas palavras, além da sua escrita para teatro, escreveu e realizou algumas obras para a televisão. O que ele pretendia era esvaziar de sentido os termos que, de tanto uso, já não serviam para nada – meras formas de cortesia, uma linguagem quase que puramente conativa. Ao repetir ad absurdum, num loop infinito, palavras e frases quotidianas, Beckett reinventou a linguagem, criando mesmo uma nova língua na dramaturgia, e nas artes, ocidentais.

Fruto de um período obscuro, como diria o filósofo Ortega y Gasset – eu sou eu e as minhas circunstâncias, Beckett reflete sobretudo acerca daquele momento em suspenso que se iniciou com o fim da II Guerra e com o início de outra Guerra, a fria, jogada noutro território – o das palavras. Orlando Franco recupera as ideias de Beckett, além de uma das suas obras, para conjugar, com esta exposição, o verbo esperar: “Quanto mais conscientes da passagem do tempo num momento de espera prolongada estamos, mais nos confrontamos com um cansaço prematuro que culminará num estado de exaustão.” O artista/curador pergunta-se o quão esta exaustão atravessa a arte, e os seus sentidos, e o quanto ela pode ser motor de criação, uma força centrípeta que empurra a arte para a frente mas que não permite que esta saia do mesmo lugar. Se a arte do início do século XX foi marcada pelo movimento, ou pelos movimentos que se autodenominaram de vanguarda, que estavam à frente do seu próprio tempo, podemos dizer que a segunda metade do século foi marcada pela suspensão – do tempo, da poesia, da criação de imagens que pudessem, de alguma forma, retratar o que se vivia.

A segunda metade do Século XX, que dura em termos de cronologia das Artes, até à contemporaneidade, é marcada pelo pensamento Existencialista, que fala da morte de Deus e devolve aos homens o livre-arbítrio. É marcada ainda pela desesperança e pela descrença num mundo cada dia mais retratável e, paradoxalmente, menos palpável – a imagem substitui o objeto e entramos na era da iconolatria, como a denominou o pessimista Jean Baudrillard: destruir as imagens é uma tarefa perigosa. Se o original se perdeu, o que pode restar? “(…) o seu desespero metafísico vinha da hipótese de que as imagens não ocultassem absolutamente nada, e de que não fossem em suma imagens construídas a partir de um modelo original, mas tão simplesmente, simulacros perfeitos, irradiando para sempre o seu fascínio”. Cabe aos artistas retratarem, à sua maneira divergente, a nova realidade que se compõe de fragmentos de linguagens, de sobejos do mundo visível, de sobras ou das ruínas de um futuro que não se chegou a realizar.

Encontramo-nos diante de um labirinto simbólico que necessita ser decifrado para que se possa encontrar uma saída, ou criar novas portas dentro das limitações que o mundo impõe. Omar Calabrese acredita que “onde quer que ressurja o espírito da perda de si, da argúcia, da agudeza, aí reencontramos pontualmente labirintos”. Os pensadores da pós-modernidade sustentam que a época em que estamos deixou-nos numa grande encruzilhada, cada dia mais presos a uma espécie de tédio radical – de não-movimento, de espera.

E esta espera, no caso da exposição Wait, torna-se sujeito, verbo e objeto. Como afirma Orlando Franco, “Mais que criar uma perspetiva fatalista sobre a questão da espera, a exposição procura indicar direções que recuperem campos de possibilidades tão diversos quanto as especificidades de cada obra (…)”. A ideia de espera presente nesta exposição e em cada obra de artistas, e suportes tão diversos, postos em relação num diálogo permanente, permite avançarmos um pouco em direção a nós mesmos, à compreensão da nossa situação contemporânea e anacrónica. Como as personagens de Waiting for Godot, somos levados a voltar sempre ao mesmo sítio, a repetir os mesmos gestos mantendo viva a esperança de que a nossa espera não é vã. Mesmo tendo plena consciência de que Godot, enquanto houver amanhã, nunca irá chegar, porque a sua chegada indicará um fim e estamos ainda no meio do caminho.

Publicado originalmente na revista ARTECAPITAL.net

https://www.artecapital.net/exposicao-597-colectiva-wait

Nothing happens. Nobody comes, nobody goes. It’s awful.
― Samuel Beckett, Waiting for Godot.

Anterior
Anterior

WAIT ou a inveja das feras selvagens - Cristina Campos

Próximo
Próximo

A-na-'sta-sis - Fernando Poeiras